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|Hélio Bernardo Lopes| |
O texto começa por salientar que a morte de Salazar representou uma mudança radical na vida do sobrinho-neto do ditador, um dos últimos herdeiros do legado. Bom, achei estranho, tal como boa parte do que depois é referido, embora não pense tratar-se de uma inverdade, antes de um problema que poderá ter sido outro.
Diz Rui Salazar de Mello que tem sido perseguido, mesmo durante aquilo que dizem ser uma democracia, com as pessoas a olharem para si como que dizendo que lá vai o sobrinho do Salazar.
Quanto ao ser perseguido, abordarei o tema um pouco adiante. Já quanto ao que pensa ser o que as pessoas dizem, para lá de poder ser apenas uma impressão, eu até posso admitir que tal possa ter lugar. Se eu estivesse em Santa Comba Dão à conversa com um amigo e por nós passasse um residente local – o Rui –, é muito possível que se cumprimentassem, dizendo depois o meu amigo que ia ali o sobrinho-neto de Salazar. Simplesmente, isso poderia perfeitamente nada significar de mal, antes a natural consequência do facto da familiaridade com um português deveras relevante na História de Portugal.
Sobre o ser perseguido, tenho as maiores dúvidas. Como Rui Salazar de Mello naturalmente percebe, as relações de grande simpatia para consigo, quando Salazar era o Presidente do Conselho, é que não eram naturais, antes a consequência de se pensar ser Salazar engraxável por aí. A ser assim, a morte de Salazar teria sempre de colocar Rui Salazar de Mello como que na peluda: deixara de ser necessário tentar engraxar Salazar, como esses pensariam.
Diz Rui Salazar de Mello que logo pelo final da década de sessenta, ainda universitário, teve trabalhos de grupo, nunca havendo ninguém para os fazer consigo. Desconhecendo a faculdade em causa, acho estranho, até porque cinco anos e pouco depois da Revolução de Abril já quase todos os saneados nas faculdades haviam regressado e sido recebidos com abraços. Vi tal acontecimento com mil e um. Até com Edgar Cardoso!
O caso que Rui refere sobre os trabalhos de grupo terá de ter uma outra causa, dado que dou o mesmo por certo. Simplesmente, eu tenho sobre esta situação uma opinião. Se um estudante universitário é sobrinho-neto de Salazar e tem lugar, por exemplo, uma greve – é essencial ter em conta o contexto global –, furar essa greve constitui um risco. E falo em furar uma greve como o podia fazer sobre um outro tema qualquer. Se se é filho de um inspetor da antiga PIDE e se resolve furar uma greve, que até era justa e generalizadamente participada, bom, o risco seria sempre enormíssimo. A estratégia ótima, numa tal situação, seria a de evitar afrontar o ambiente em que tinha de viver-se. Ou não é verdade? Claro que é!
Depois, Rui Salazar de Mello refere que Marcello Caetano não gostava de Salazar e que quando este morreu, escreveu ao cabeça de casal da herança para que, em certo prazo, fossem tirados todos os pertences de Salazar do Palácio de São Bento. Bom, mas isto é o lógico e natural, e logo a começar pelo próprio interesse dos familiares de Salazar. Uma realidade que nada tem que ver com o facto de Caetano não gostar deste. A verdade é que a dimensão política e histórica de Salazar é incomensuravelmente superior à de Marcelo. Simplesmente, era essencial dar um novo rumo à topografia e funções do Palácio de São Bento, pelo que se impunha que o cabeça de casal da herança recolhesse o que era do anterior Presidente do Conselho. É o normal.
Também com toda a sinceridade, não consigo perceber como é que a perseguição a Rui Salazar de Mello continuou até aos dias de hoje. Basta recordar os casos de Edgar Cardoso, ou de Pedro Soares Martinez, ou de Inocêncio Galvão Teles, ou de Maria de Fátima Fontes de Sousa, entre tantos outros, para se perceber que regressaram à universidade, continuaram a ensinar, a projetar, e dar pareceres ou a investigar, e até foram agraciados com obras singulares e só feitas para gente altamente considerada nos seus meios profissionais. Mais: o próprio Salazar acabou por ganhar o concurso sobre O MAIOR PORTUGUÊS DE SEMPRE, pelo que custa perceber como se terá podido continuar a perseguir um sobrinho-neto, só porque o era de Salazar. Haverá de compreender-se que há neste caso algo que está para lá da figura histórico-política de Salazar. Pode até ser uma simples impressão, ou uma espécie de implicação nervosa, digamos assim.
Quanto ao problema de se governar com mão de ferro, a verdade é que Salazar é um produto das circunstâncias. Dizia-me há uns anos Manuel Diniz da Fonseca, e com razão, que Salazar era uma personalidade com período de retorno de duzentos anos. Objetivamente, Salazar foi ele e as suas circunstâncias. Só pôde ser um Ministro dos Negócios Estrangeiros excecional porque o mundo foi vítima de um tarado e de mais dois ou três cúmplices. Um matou-se, outro foi assassinado e outro lá teve a sorte de ser endeusado por Mac Arthur.
Mas se Rui Salazar de Mello olhar Portugal com atenção, facilmente constatará que nos encontramos, ao nível europeu, numa posição relativa semelhante. A História de Portugal, como história que é de um povo, tem a inércia criada por quase nove séculos. Nós não iremos nunca ser campeões mundiais ou europeus de futebol ao nível de seleções, nem iremos, pelo final do século, muito para lá das dez medalhas de ouro olímpicas. Temos hoje quatro, com o Zimbabué já com três.
A seguir, Rui Salazar de Mello aborda um conjunto de temas em que, ou tem razão e usa-a mal, ou simplesmente não a tem. Em todo o caso, trata-se de temas hoje cabalmente ultrapassados, para mais depois do que se vai vendo pelo mundo.
Mas o final da conversa-entrevista parece esclarecer o que poderá estar em jogo neste caso. Segundo parece, Rui não desarma na defesa do Estado Novo. Em si, isso não tem mal, mas tem de ter-se cuidado com a inércia da História e com as marcas culturais que esta vai sempre criando. Hoje, abordar o Estado Novo é só para historiadores, porque se trata de um tempo que passou. Pode tratar-se o tema, desde que de um modo coloquial e sem que essa abordagem constitua um ataque à nova ordem constitucional criada. Não há nesta minha ideia nenhum convite ao silêncio, pelo contrário, até já vi muito boa gente ficar aflita por me ter pela frente. E gente do antigamente ou do atualmente. Da esquerda ou da direita.
Por fim, uma nota muito breve. Diz Rui Salazar de Mello que, em vez de se entregar o Ultramar, como Mário Soares fez, devia ter-se feito uma consulta ao povo, porque ninguém podia fazer aquilo que ele fez. Ideias interessantes, mas cabalmente erradas. Vejamo-las.
Mário Soares, no seu PORTUGAL AMORDAÇADO, chegou mesmo a defender que a defesa das antigas províncias ultramarinas devia ter sido precedida de uma auscultação aos portugueses. Simplesmente, esta ideia era inexequível, tanto ao nível da forma como da execução prática. Ou se defendia aquela presença, ou se seguia a moda lá de fora. Como Salazar conhecia muitíssimo bem a História de Portugal, seguiu a sua leitura das lições desta e à luz dos interesses permanentes nacionais. Simplesmente, sobreveio a Revolução de 25 de Abril, sendo que uma das primeiras ideias era já a de pôr um fim na defesa do Ultramar Português e seguir as pisadas dos outros. Mas, como hoje já se percebe bem, os outros descolonizaram porque quiseram, ao passo que nós descolonizámos porque esse era o caminho dos que sempre mandaram. Hoje sim, é que os outros mandam e nós obedecemos. Como se vê, estamos de mão estendida e à espera de um D. Sebastião. Já todos perceberam que o futuro nunca chegará.
Mas o que não pode dizer-se é que foi Mário Soares que se determinou a entregar o Ultramar Português. Claro que ele defendia essa entrega, mas esta só seria exequível se a anterior ordem constitucional fosse derrubada. E quem a derrubou foi o Exército, sem que se possa dizer que também o foram a Marinha e a Força Aérea. Estes dois ramos limitaram-se a ver como prosseguia a revolução. De resto, se não fosse o Exército a derrubar a anterior ordem constitucional, nunca seriam Mário Soares ou Álvaro Cunhal a fazê-lo. Nunca o conseguiram. E é bom não esquecer a quase metade de votos que, em 1969, teve a CEUD em face da CDE.
Mas existem muitas aspetos negativos que podem ser imputados a Mário Soares, muito em especial, o facto de ter sido ele e o seu PS que acabaram por abrir as portas ao regresso da direita atual – olhemos o que diz o Papa Francisco –, que nos tem vindo a destruir e a empobrecer. E também o apoio que se fartou de dar a Pedro Passos Coelho, de quem dizia ser muito simpático e alguém com quem se podia dialogar… Até, também, o seu alinhamento (quase incondicional) com a grande estratégia dos Estados Unidos no mundo, que nos está agora a colocar, com o apoio do comando europeu alemão, à beira de uma nova guerra grande. E será que não há duas sem três?... Enfim, penso que poderei ter dado uma ajuda a Rui Salazar de Mello no sentido de poder perceber, através de um outro ângulo, o que poderá, de facto, ter-se passado ao redor da sua pessoa e do honroso apelido que transporta.