Abuso, desnorte e ferro e fogo

|Hélio Bernardo Lopes|
Como pode imaginar-se, fiquei verdadeiramente chocado e revoltado com os homicídios perpetrados por três fanáticos, com abusivas interpretações do Islão, e que todos pudemos acompanhar a partir de França. 

Tal como há dias referiu Boaventura Sousa Santos, também eu, se acaso pudesse condicionar o desfecho dos dois casos, teria preferido que os criminosos não tivessem sido mortos, porque se seguiriam interrogatórios que iriam ser de enorme utilidade.

Um dado é certo: foi um crime sem perdão, cruel e de uma violência que todos puderam ver, quase em direto. Porém, embora sem perdão, impõe-se procurar uma explicação para um tal tipo de comportamento. É o que vou agora procurar fazer. A Europa foi o berço do contacto dos seus povos com os de outras partes do mundo. Portugueses, ingleses, franceses, espanhóis, italianos, belgas, holandeses, alemães e outros conseguiram chegar a lugares diversos do Planeta, assim construindo o que sempre designei como comunidades expectáveis para tais situações.

Tais encontros, naturalmente, teriam sempre de degenerar em situações abusivas por parte dos povos europeus. Tudo numa situação que durou séculos e cuja solução só foi encontrada na sequência do último conflito mundial. Embora, no tocante à grande região do Médio Oriente se tenham esboçado situações em tempo anterior. Em todo o caso, a data marcante para o início da saída dessas terras longínquas dos povos europeus só se deu após o fim daquele conflito mundial.

Acontece que a saída dos europeus dessas paragens distantes foi, acima de tudo, o fruto de uma análise custo-benefício, e com resultados que, durante décadas, até foram funcionando de um modo aceitável. O fim da antiga URSS levou ao desmoronamento do seu espaço de influência, deixando deste modo os países que bebiam no seu comando ainda mais à mercê de cada um. O resultado, como se tem vindo a ver a cada dia, foi uma guerra intensa no seio do espaço árabe e no do Islão, desde logo buscando razões em divergências históricas iniciais e nunca realmente superadas, dado que a modernidade, depois da saída dos europeus, também não conseguiu encontrar razões para ser aceite.

A implantação do poder central e único dos Estados Unidos, cujos resultados no espaço europeu se estão já hoje a ver, mostrou a quase completa ausência de esperança para os tais países saídos das históricas colonizações. Se para nós, europeus, o resultado é o que se vê e perspetiva, imagina-se o que poderá dar-se com quem é jovem, é pobre e vive num desses países saídos das antigas colonizações europeias. Por razões históricas e pela necessidade de mão-de-obra barata, os diversos Estados da Europa foram abrindo as portas a cidadãos oriundos dessas antigas colónias. Noutras situações, mas por via da mesma causa, sucedem-se as avalanchas de pessoas oriundas de zonas pobres, invariavelmente situadas em áreas de cultura religiosa islâmica.

Acontece, como certamente já todos terão percebido, que a diferença étnica e religiosa não é nunca completamente superável. Terão sempre de surgir tensões no seio deste tipo de convivências, sendo que tais tensões se manifestaram numa prática de guetização. A uma primeira vista, todos convivem harmoniosamente, mas a verdade é que nada de verdadeiramente eficaz foi feito para integrar cabalmente as pessoas nestas circunstâncias, sendo que eu mesmo tenho dúvidas quanto à possibilidade de êxito de um tal objetivo. E as razões são estas: é essencial um plano humanista adequado, realmente aplicado com eficácia, que requer tempo – muito – e exige meios materiais elevados.

A verdade, como agora se pode já ver, é que tudo isto falhou. Falhou mesmo a partilha e o tratamento de informação, desde a fornecida pela Argélia, à dada pelos Estados Unidos. A própria jovem Boumedienne, a fazer fé no que se tem noticiado, terá conseguido chegar a Madrid e partir daí para a Síria através do Curdistão Turco. A ser verdade, será a cereja no topo do bolo.

Objetivamente, estes jovens que cometerem os crimes hediondos a que assistimos estavam a anos-luz de estar integrados na sociedade francesa. Todo o formato da sua atitude perante a vida do dia-a-dia só se suportava nas raízes distantes, onde se encontrava omnipresente o Islão, mas muito longe de ser realmente conhecido ou meditado. Mesmo sendo inteligentes, eram já jovens muito marcados, sem perspetivas de vida, com passagens pela prisão, e por aí mais ainda marginalizados. A sua vida oscilava entre a pequena criminalidade, ao serviço de criminosos intermédios, e a fuga e insinuação junto das autoridades. Eram, pois, presa fácil para um qualquer doutrinador bem treinado.

Tudo isto, porém, sucede numa comunidade onde a perceção do desnorte é imediata. Facilmente terão percebido que a Europa destes dias, para lá de apenas lhes dar casa e algum sustento, já está mesmo a atingir os seus nacionais de sempre, e tudo isto ao mesmo tempo que uma minoria vai crescendo em riqueza e opulência. Se quem os doutrinou lhes explicou – à sua maneira, com verdades e mentiras – os horrores do passado colonial, tudo passa a estar à beira do ferro e do fogo. Pois se assim não fosse, não se assistiria à completa ausência de contacto entre quem tem poder e os cidadãos: vivem no meio de uma segurança que desejam absoluta, porque estão sempre à espera que surja do seio da comunidade dos cidadãos uma reação que os pode atingir, seja do modo que for.

Tenho dificuldade em aceitar que não se consiga entender esta realidade que aqui exponho. De resto, ainda ontem o Papa Francisco se voltou a referir à evidência de há muito: quando os mercados financeiros contam mais do que as pessoas, isso é sinal de que a economia está doente. Mas disse ainda mais: que até o Papa Paulo VI e Santo Ambrósio disseram que a propriedade privada não pode ser um direito absoluto e incondicional. E talvez para se precaver dos avaros, de pronto tenha salientado que cuidar dos pobres não é ser comunista.

Mas o Papa Francisco poderia mesmo referir o bom cinismo que esta manifestação francesa de domingo comportou: falaram muito de unidade e de liberdade, mas esqueceram logo o maior partido da França atual, tal como a sua líder. De resto, houve mesmo um cartoonista do Charlie Hebdo, que por sorte não foi assassinado, que de pronto se referiu ao cinismo de mil e um que vertem agora lágrimas pela liberdade de expressão, sendo que sempre ostracizaram o jornal e tudo foram tentando para o calar.

Por fim, este fantástico hino à hipocrisia: depois de terem rejeitado as teses de Marine Le Penn, mormente ao redor do caso da livre circulação, vão agora tratar do caso sob proposta da Letónia. E já se fala em medidas que deixariam os velhos militares gaulistas a corar de surpresa e estupefação. Enfim, horrorosos crimes contra gente indefesa e sem culpa, praticados por rapazes e raparigas completamente desenraizados. Podiam simplesmente ter desistido da vida, mas preferiram fazê-lo como assassinos. E tudo isto numa União Europeia que se transformou num completo fracasso político e que recusa já mesmo a própria democracia, como se vem vendo com o caso da Grécia. A União Europeia transformou-se na terceira tragédia da Europa.

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