Uma canção com quarenta anos

|Hélio Bernardo Lopes|
Quem tiver vivido estes últimos quarenta anos da III República em Portugal, facilmente se terá dado conta, muitas vezes até com grande espanto, das mil e uma piruetas políticas que o PS foi dando ao redor dos problemas que Portugal e os portugueses iam vendo surgir. 

Precisamente por governar como se viu, completamente à revelia dos tais valores do (dito) socialismo democrático, o PS constituiu-se na principal chave para o desmantelamento do que a Revolução de 25 de Abril e a sua Constituição de 1976 trouxeram à generalidade de todos nós. O resultado está hoje à vista de todos.

Também nunca duvidei – escrevi-o mesmo e sobre o acontecimento – de que o apoio público e reiterado de Mário Soares a Pedro Passos Coelho, que já então defendia uma revisão radical da Constituição da República, se destinava a que o PSD, só ou em coligação, e para mais suportado pelo Presidente Cavaco Silva e por Durão Barroso e Merkel, pudesse pôr um fim, acima de tudo, no Estado Social, mormente nos essenciais domínios para a verdadeira liberdade dos cidadãos que são os da Saúde, Segurança Social e Educação. Também aqui o resultado é bem visível: o PS tenta agora dizer que foram o PSD e o CDS/PP os responsáveis de tal desmantelamento.

Esta mudança de fundo foi sempre defendida, ao longo do tempo, pela direita do PS, nomeadamente por António Vitorino, Luís Amado, Francisco Assis e vários outros, entre os quais o próprio José Sócrates, como veio a poder ver-se numa sua intervenção dominical, onde explicou que seria depois muito mais difícil repor o Estado Social. O próprio Mário Soares não se tem cansado de defender a errada ideia de que a atual Maioria-Governo-Presidente destruiu completamente o Estado Social. Bom, competirá à oposição que vier a governar repô-lo. Mas fá-lo-á?...

Pois, num destes dias, já sem um infinitésimo de espanto, eis que nos surgiu António Vitorino, naquele seu programa semanal, a defender que Portugal não se pode dar ao luxo de ter instabilidade governativa, defendendo a necessidade de voltar a existir consenso político. Uma afirmação que simplesmente significa que o que foi feito pela atual Maioria-Governo-Presidente é para ficar. Ou seja: terá de haver um consenso – já está a começar, mas com as subvenções vitalícias dos deputados –, mas mantendo o já feito depois da governação de Sócrates.

Mais interessante, ainda, foi ouvir António Vitorino culpar o próprio PS de Sócrates, ao apontar que, sendo Portugal um país periférico, que vem de uma situação débil, sobreendividado e cujo ajustamento teve custos elevados, não se pode dar ao luxo de ter um período de instabilidade governativa. Mais de três anos a criticar o atual Governo, para num ápice, vir reconhecer que os erros do Governo de Sócrates obrigam à continuação da atual política! E então diz-nos esta fantástica balela: é necessário recuperarmos, nós portugueses, uma certa cultura de compromisso, que esteve presente em vários momentos decisivos da nossa história democrática destes últimos quarenta anos, sendo que quando falo em recuperar uma cultura de compromisso democrático, falo também no plano partidário como no plano social. Os cortes são, pois, para ficar, tal como a destruição dos setores da Saúde e da Educação. É o socialismo democrático no seu melhor.

Tocando a mesma nota, sem desafinar, Francisco Assis pôs completamente de lado a possibilidade de, em caso de vitória socialista, haver uma coligação com os partidos mais à esquerda na formação do governo. É uma nota cabalmente dentro do historicamente orquestrado ao nível do PS, sempre ligado aos grandes interesses e à direita que os foi defendendo.

Mas Francisco Assis foi ainda mais claro, porque recusou a esquerda e o centro. A direita terá de ser o parceiro natural do PS – foi sempre –, até por ser neoliberal. É o que Assis pensa poder vir a ser um Governo derivado de uma vitória nas eleições do próximo ano. E – haverá de convir-se – está completamente dentro da linha histórica do PS, mal a Revolução de 25 de Abril teve o seu êxito: sem maioria absoluta e na necessidade de um governo de coligação, terá este de ser à direita. E mais: o PSD é o parceiro ideal para uma coligação e para garantir a devida estabilidade política. O PS de hoje, completamente alinhado com a sua história de cedências à direita dos interesses.

A tudo isto, junta-se Eduardo Ferro Rodrigues, que logo nos surgiu a dizer que não acredita que o seu partido venha a conquistar uma maioria absoluta nas eleições legislativas do próximo ano. Uma realidade que entende dever-se a uma situação de mal-estar em relação aos partidos tradicionais, hoje reinante no seio da sociedade. Devem ser os portugueses que são estúpidos, porque não são capazes de perceber que o PS está aí a trabalhar na defesa do verdadeiro socialismo, que é o democrático. De molde que Ferro Rodrigues vai-se resignando, já puxado pela posição política clara de Assis, que é a dos objetivos da direita.

Infelizmente, Eduardo Ferro Rodrigues não teve a coragem – até se compreende – para reconhecer que a grande maioria dos portugueses, depois das transmutações políticas do PS, sendo uma coisa e o seu contrário em simultâneo, se está hoje nas tintas para a democracia. Quarenta anos depois da Revolução de 25 de Abril, os portugueses vivem na miséria, sem futuro, assistindo ao lamentável espetáculo das subvenções vitalícias dos deputados e com o PS a colocar a direita como seu aliado preferencial.

Nós ouvimos, há bem pouco tempo, Ana Catarina Mendes, em nome do PS, dizer na Assembleia da República que o PS, logo que chegasse ao poder, reporia os montantes devidos, por exemplo, aos reformados e pensionistas. Maria de Belém já o havia dito a Mário Crespo, a propósito dos aposentados do regime contributivo. Num ápice, porém, António Costa veio explicar que o montante a repor em 2016 e depois será o possível. O seja, o que o PSD e CDS/PP também já disseram numa qualquer vez – uma posição que vai variando.

Concomitantemente, Hélder Rosalino, com aquela credibilidade política que os portugueses lhe reconhecem, logo veio dizer que o Estado não tem capacidade para manter compromissos assumidos há vinte anos, defendendo a reforma da Segurança Social. Leia-se: privatiza-la. Sem maioria absoluta, havendo que operar cedências mútuas, o PS entrega esta, recebendo, com protestos, as fantásticas conquistas fraturantes... Perante mais este desastre social bem à vista, de Mário Soares, António Arnaut, Manuel Alegre, Vítor Ramalho, Almeida Santos e tantos outros, o que sobrevém é o silêncio. Por isso tenho de concordar com Baptista-Bastos: a pátria está moralmente doente, porque a democracia, a “nossa”, é abjeta. Nada é tão verdadeiro.

É essencial perceber o real significado de não vir o PS a receber uma maioria absoluta nas próximas eleições para deputados à Assembleia da República. E muito mais significativo se a atual maioria continuar a sê-lo ou muito próxima disso, mesmo que por defeito. E o significado que daí se retirará é o que certo académico norte-americano em tempos defendeu: temos um partido a mais. Em França, Manuel Valls já procurou colocar as coisas no seu lugar, lançando a ideia de retirar a palavra Socialista do nome do seu partido. Por cá, Arnaut recusa tal de um modo liminar, mas a verdade é que o aliado do PS, como sempre se deu, é a direita. Desta vez, é A TRAGÉDIA DO LARGO DO RATO, materializada numa canção com quarenta anos.

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