O discurso do presidente Cavaco Silva

Hélio Bernardo Lopes
Escreve diariamente
Como teria de dar-se comigo, não acompanhei a transmissão das cerimónias do Dia de Portugal, que tiveram lugar na Guarda, cidade que conheço razoavelmente bem, tal como a maior parte do distrito de que é sede. E não acompanhei a referida cerimónia porque as palavras do Presidente Cavaco Silva, em princípio, teriam um quase nulo interesse. Acertei.

Acabei por só saber da quebra de tensão que terá atingido o Presidente Cavaco Silva pelas quatro e meia, já no café e, ainda que sem ouvir a locução, por via das imagens que fui podendo ver. Naturalmente, de pronto recordei a cerimónia da tomada de posse do Governo liderado por António Guterres, na primeira metade da década de noventa do século passado.

Este incidente, porém, veio mostrar como, quarenta anos depois da Revolução de 25 de Abril, foi possível escutar da palavra do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas um pedido de respeito por Portugal e pelas Forças Armadas, quando o que estava em causa era o mais que legítimo direito de protesto contra a ação política do atual Governo, pedindo ali a sua demissão. Como se torna evidente, era o local mais apropriado para operar a referida manifestação.

Estas palavras do general Pina Monteiro ilustraram bem como a Associação 25 de Abril se encontra hoje a anos-luz do que, no plano do exercício das liberdades, direitos e garantias, se projeta da hierarquia das Forças Armadas. E por isso tenho chamado a atenção para as palavras de Vasco Lourenço, já proferidas duas vezes, pedindo aos militares que nunca se virem contra os portugueses. Não poderão ser palavras ditas assim, sem mais...

A este propósito, convém aqui referir as palavras de Mário Soares, no seu texto de ontem, no Diário de Notícias: é extraordinário como o atual Governo se mantém – contra a vontade da esmagadora maioria dos portugueses – com mentiras sucessivas e sem ter qualquer visão para o futuro a não ser o respeito pela famigerada Tróyka. E tem a mais cabal razão. Simplesmente, o que esta evidência por si citada mostra é que o mecanismo democrático acaba por não fornecer saída para uma situação como a atual. Que o resultado de futuras eleições será um tareão sobre PSD e CDS/PP, pois, sabe-o o Governo muitíssimo bem. Se sabe!

Mas vamos, então, ao segundo discurso do Presidente Cavaco Silva. Em primeiro lugar, o discurso não teve nenhum dado que o possa vir a marcar para o futuro. De resto, começa logo por referir que Portugal é um Estado soberano, o que só formalmente corresponde à realidade. Basta ir escutando o que nos dizem os governantes e como toda a gente estrangeira tenta condicionar as decisões do Tribunal Constitucional, e dos próximos Governos, para se perceber que Salazar morreria de tristeza e dor íntima se olhasse hoje o estado a que chegou Portugal.

Ainda neste sentido, o Presidente Cavaco Silva salientou que somos um país uno, o que está longe de ser verdade se olharmos o modo completamente desigual como foram distribuídos os sacrifícios que a atual Maioria-Governo-Presidente impôs entre nós: nunca tantos viveram tão mal e tão poucos tão faustosamente. Se somos um país uno é porque essa unidade resulta da História e dos fatores que condicionaram o seu desenvolvimento.

Em segundo lugar, o Presidente da República volta à sua ideia do imperativo de unir esforços e de médio prazo. Não explica, porém, em torno de que valores. É verdade que abordou as grandes relíquias conseguidas pela Revolução de 25 de Abril e consagradas na Constituição de 1976, mas é-o igualmente que o Governo atual, que tem suportado contra tudo e todos, se vai diariamente encarregando de as delapidar.

Em terceiro lugar, o Presidente Cavaco Silva salientou que neste ano de 2014, conquistámos o direito a ter esperança, uma vez que o programa de assistência financeira foi concluído no passado mês de maio. Se esta afirmação ainda se pode tomar como correta, já a primeira está fora de toda a realidade. Esperança? Mas como, se os portugueses continuam com a garantia de que tudo vai continuar como até aqui, ou mesmo piorar? Alguém pensa o contrário? Não acredito.

Em quarto lugar, nós podemos aceitar que o povo português deu mostras de uma maturidade cívica exemplar, embora as palavras de Pina Monteiro e as posições isoladas de alguns presentes no meio da manifestação contra a atual política tenham mostrado que a referida maturidade é apenas o modo cauteloso típico do português, e que levou, há um tempo atrás, Vítor Gonçalves a questionar Otelo sobre se os portugueses convivem bem com a falta de liberdade. E a prova de que a resposta é afirmativa deu-a Amadeu Garcia dos Santos, ao referir que aguentámos a II República tranquilamente.

Em quinto lugar, discordo de que com os sacrifícios que todos tivemos de fazer, será possível olhar o futuro com mais esperança e com renovada confiança. De há muito percebi que o futuro de Portugal será de extrema dificuldade, quer por razões do tempo que passa, quer pelo modo como a classe política, de um modo muito geral, vive subserviente a estratégias que nunca foram nossas, quer pelo modo como o desenvolvimento tecnológico se tem dado, quer, ainda, pelo modo português de estar na vida, em geral muito individualista e invejoso.

Em sexto lugar, o mesmo que o PS – todo o PS – tem vindo a dizer, e que tantas críticas sem nexo vai merecendo: temos o direito de esperar das instituições europeias a solidariedade e o apoio que soubemos merecer graças ao nosso sentido de responsabilidade. Mas então não nos foi dado ouvir há dias Merkel salientar que não existe um Estado Social Europeu? Solidariedade europeia? Onde ela vai...

Em sétimo lugar, ainda o futuro, que depois de nos ser apresentado como suscetível de poder ser olhado com mais esperança e com renovada confiança, logo mais à frente nos é referido como nos reservando algumas decisões difíceis, porque não podemos esquecer as regras de disciplina orçamental a que todos os Estados-membros da Zona Euro estão sujeitos.

Em oitavo lugar, a situação dos jovens, dos idosos, dos aposentados do regime contributivo, dos doentes, dos estudantes, todos eles merecedores de um futuro de acordo com as leis da República ao tempo em que se viram vinculados à orientação do Estado. Mas é isso que tem vindo a fazer o atual Governo? Claro que não! O que a atual Maioria-Governo-Presidente tem vindo a fazer é exatamente o oposto. Que o digam os mais diversos conselheiros do Tribunal Constitucional e quase todos os portugueses.

E, em nono lugar, o renovado – faz lembrar o desenrolar de uma série de termos constantes – apelo ao consenso. Apesar de ser um apelo já cansativo, a verdade é que, como tudo parece mostrar, o PS lá acabará por tergiversar e seguir tal ideia. Ou seja, aceitar e aplicar quanto já foi feito até aqui, mormente no domínio do Estado Social e da legislação completamente limitadora dos direitos de quem trabalha. Basta olhar o modo apressado como a UGT deita mão de todo e qualquer assomo de aparente boa vontade do Governo nesta área.

De todo este discurso, e da sua envolvente, o que verdadeiramente sobressaiu foram as palavras do general Pina Monteiro, tentando que parasse a manifestação que decorria em nome do respeito por Portugal e pelas Forças Armadas. Como se fosse isto que estava ali em causa!!

No entretanto, aí nos foi dado ouvir, logo pela noite, Augusto Santos Silva – um excelente estimador do que será uma política futura do PS –, contestando a inteligência do protesto, ou seja, de novo o PS e no seu melhor. Foi por termos um PS que sempre pensou como ora nos referiu Augusto Santos Silva, que se chegou ao triunfo da direita neoliberal dos nossos dias. Por cá e por toda a parte. Está aqui o que será a política futura do PS.

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