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Hélio Bernardo Lopes Escreve diariamente |
Esta afirmação, comportando uma boa dose de verdade, não traduz, porém, a verdadeira causa do desinteresse dos portugueses pela vida política. Nos termos de quanto pude ver nos meus quase sessenta e sete anos, os portugueses, de um modo muito geral, nunca se interessaram muito pela vida democrática, mas estiveram sempre atentos à vida política. Discutiam-na mesmo no seu dia a dia, mais ou menos abertamente, conforme o lugar da discussão.
Ora, desde a manhã de 25 de Abril de 1974 que, com pequeníssimas variações, a generalidade dos portugueses aceitou a vida político-partidária com o mais cabal civismo. Infelizmente, também com algumas limitações do leque de opções disponíveis, perseverando na escolha do PS ou do PSD, sempre insatisfeitos, em permanente perda à medida que o tempo decorria, mas sempre incapazes de operar uma mudança na sua opção partidária.
A tudo isto, que traduz já um modo muito próprio e antigo de estar na vida, somou-se a histórica corrupção, atitude também muito típica do modo português de estar na vida e, por igual, muitíssimo antiga. E para se perceber o que foram os últimos cento e vinte anos da História de Portugal nada melhor do que utilizar índices mensuráveis e universais e, por isso mesmo, suscetíveis de comparação. Não irei aqui mais longe, até porque pude já escalpelizar os mesmos em textos anteriores.
Escrevi estas linhas introdutórias a propósito da entrevista concedida por Rui Rio a dois grandes órgãos de comunicação social, e onde acaba por defender uma autêntica refundação da nossa vida constitucional, sempre à luz de que o problema português é essencialmente estrutural e muito distante da realidade cultural de todos nós na nossa vivência comunitária.
Em primeiro lugar, Rui Rio acusa os mercados e as agências de notação financeira de serem pouco racionais e, por isso, prefere que Portugal saia do programa de assistência financeira com programa cautelar, embora acredite que o Governo irá preferir a chamada saída limpa.
Achei graça à qualificação dos mercados e das agências de notação financeira como pouco racionais, quando de há muito me dei conta de que o que realmente são é completamente imorais, servindo interesses obscuros mas percetíveis. Muito mais que o histórico KGB, os mercados e as agências de notação financeira é que são a verdadeira mão oculta do tempo que passa.
Em segundo lugar, Rui Rio, que começou por defender mudanças profundas no Sistema Político, logo extrapolou tal ideia para o próprio Regime Constitucional, levantando críticas e dúvidas sobre a generalidade do funcionamento dos nossos órgãos de soberania, mas poupando o atual Presidente da República, ou mesmo o cargo em si, tal como se encontra agora definido.
É verdade que a generalidade das instituições do País estão profundamente abaladas, mas não por via do desenho constitucional ou político. Chegou-se ao atual estado por via das escolhas feitas pelos cidadãos. E o grande erro dos eleitores, como pude já escrever por vezes diversas, foi a escolha de Aníbal Cavaco Silva para o cargo de Presidente da República. Esta escolha, tendo recaído num concidadão oriundo da direita política, permitiu o surgimento da desde sempre sonhada Maioria-Governo-Presidente de direita, que sempre conduziria a um abalo profundo na estrutura constitucional do País.
Em terceiro lugar, nós não temos falta de alternativas políticas, a não ser que se coloquem o PCP, os Verdes e o Bloco de Esquerda como meras estruturas políticas de composição parlamentar. Assim como quem escolhe rosas, cravos ou malmequeres. Desde que se deite mão, de facto, de uma democracia autêntica, realmente destinada a servir, que razões podem levar aqueles partidos a estar sempre fora da governação? Só velhos e terríveis tiques culturais, que até permitiram que a II República acabasse por durar quase meio século.
Em quarto lugar, Rio também critica a judicialização da política, dizendo que não se pode recorrer a um juiz para evitar o fecho de um tribunal, acusando o setor da Justiça de ser demasiado opaco. Esta segunda proposição é indiscutivelmente verdadeira, mas a primeira tem uma causa: a violação constante da lógica inerente a uma vida digna em sociedade, o que faz com que se tenha de recorrer ao último reduto de defesa de direitos naturais. E é bom, nesta matéria, que Rui Rio rememore o caso do histórico juiz Barata, logo depois de 25 de Novembro de 1975, ao redor da inconstitucionalidade da Lei 8/75, bem como da resposta então dada pela Comissão Constitucional. Essa judicialização da política, ou a politização da justiça, são coisas muito antigas.
Certamente por conveniência de circunstância, Rui Rio deita mão do exemplo do tribunal, mas tal é logo completamente diferente de um centro de saúde ou de uma escola. Para já não falar do caso das pensões ou reformas, cujo sistema se sabe hoje ser completamente sustentável, até por muitos anos, sem que surja um português que aceite debater o tema com António Bagão Félix no seu tempo de comentário de quarta-feira.
E, em quinto lugar, culminando toda esta sua conversa, Rui Rio defende uma coligação de esforços entre os principais partidos do arco do poder, incluindo no domínio da escolha do candidato presidencial a apoiar. O que Rio não apresenta é o programa dessa união partidária, nem a personalidade a apoiar pelos dois ou três partidos que nos conduziram até ao estado em que nos encontramos. Além do mais, o exemplo de Eanes tinha como pressuposto a defesa da Constituição da República, ao passo que a ideia de Rio suporta-se na da sua substituição, naturalmente em ordem a seguir-se mais um desgraçado modelo neoliberal.
Sejamos sinceros – e eu creio que o ex-autarca portuense o é também: o que Rui Rio defende, afinal, é uma espécie de União Nacional. Com a mudança do Regime Constitucional e do Sistema Político, o que acabaria por dar-se seria o completo esvaziamento da representação parlamentar do PCP, Verdes e Bloco de Esquerda. A tudo isto, somar-se-ia uma espécie de Américo Tomás, para mais eleito – supostamente, claro – por uma larga maioria. E, com elevada probabilidade, à luz da obrigatoriedade do voto. Até porque, como facilmente se percebe, os portugueses nunca se determinariam, de livre vontade, a deitar o pouco que ainda resta da liberdade democrática para o caixote do lixo político e por esta via.
Por fim, esta entrevista reforça o que há dias escrevi a propósito da antidemocrática ideia do voto obrigatório: também esta entrevista de Rui Rio mostra as aflitinhas dos políticos de hoje, mas por igual o falhanço da III República. Em mui boa medida, o que Rio agora nos diz é que Salazar, afinal, tinha razão.