Lamentavelmente, tenho de começar este meu texto com uma manifestação de forte pesar pela morte de José Medeiros Ferreira, que sabia estar bastante doente, mas que nunca aceitei que pudesse deixar a nossa companhia.
Tive sempre por José Medeiros Ferreira uma profunda consideração, tanto política como intelectual. Sem nunca o ter conhecido, nem mesmo ter estado perto de si, nutri sempre por ele uma enorme admiração.
Em contrapartida, pude ver nas imagens televisivas deste acontecimento um seu irmão, falando com José Pacheco Pereira, e que poderá ser o oficial da nossa Marinha que há umas décadas, na Direção de Faróis, permitiu que eu e um conjunto de amigos visitássemos o Farol do Bugio. Uma visita inesquecível, suportada numa simpatia e numa galhardia militar que deverá ser também muito típica da família Medeiros Ferreira. Lamento muitíssimo, pois, a morte de José Medeiros Ferreira. Um outro irmão meu, como se deu com Miguel Portas.
Mas vamos, então, ao meu texto de hoje, que prolonga o que ontem escrevi ao redor da entrevista do general Amadeu Garcia dos Santos. Quando se fala da História de Portugal do Século XX tem sempre de escrever-se, e muito, sobre Salazar e sobre o regime da Constituição de 1933. Invariavelmente, as análises feitas vêem-se marcadas pela narrativa dos vencedores da Revolução de Abril ou pela dos que surgiram na vida política pela porta por si aberta.
Simplesmente, a Constituição de 1933 só surge sete anos depois da Revolução de 28 de Maio de 1926, naturalmente operada pelo Exército, com apoios também na Marinha. Como é evidente, para mudar o rumo das coisas a que se chegara com a I República não chegava o povo. Nem nessa situação nem na atual, apesar da inacreditável ideia há dias expressa por Vasco Lourenço e por Otelo Saraiva de Carvalho. Pois, se estivéssemos à espera do povo para operar a Revolução de 25 de Abril, com a tranquilidade referida na entrevista do general que existiu na II República, nunca o 25 de Abril teria tido lugar.
Os militares do 28 de Maio lá foram aconselhados a procurar Salazar para as Finanças, mas também este se apercebeu que muitos vícios que vinham de trás continuavam presentes. E foi-se. Voltou depois e acabou por assumir a chefia do Governo, embora sempre psicológica e publicamente subordinado a Óscar Carmona. Portanto, que fazer? Bom, pôr ordem na desordem que vinha da I República e quase não parara com os militares do 28 de Maio à frente do Estado.
Ora, que ordem poderia ser instituída? Olhando com atenção, até pelo que já se está a passar de novo em Portugal e em muitos países da Europa, os partidos teriam, naturalmente, de ser inviabilizados. Era a lógica das coisas, em face do que se passara. E, excetuando uma pequena parte de portugueses do tempo, a verdade é que a generalidade viveu tranquilamente os anos que se sucederam.
Como teria de dar-se, Salazar impôs valores ao País e aos portugueses. Esses valores, se olharmos sem paixões o que estava em causa, são sempre os mesmos. Basta olhar para o comportamento atual da Alemanha no seio da União Europeia, e logo se percebe que os seus cidadãos, incomensuravelmente mais que europeus, são alemães. Para estes, entre a Alemanha e os restantes é ela que está primeiro. Quem tem poder, procede assim. E quem tem riqueza, protege-a.
Tive sempre para mim que os portugueses foram uns sortudos ao longo da Guerra Civil de Espanha e, sobretudo, da Grande Guerra de 1939-1945, porque foram poupados ao sacrifício da vida por via da política de Salazar. Jogou como convinha a Portugal? Claro! Um político de craveira procede assim no Mundo que temos. E veja-se como, através de Adriano Moreira e de Franco Nogueira, de imediato tentou concitar, no caso de Goa, Damão e Diu, o apoio da República Popular da China. Fez como Estaline com Hitler e o Pacto Germano-Soviético, ou como as Tordesilhas Americano-Soviéticas. É sempre assim.
Mas a guerra terminou e De Gaulle, por via de uma daquelas suas bravatas costumeiras, pôs-se a conceder independências. Os grandes Estados da Europa fizeram o mesmo, mas porque lhes era economicamente útil, dado saberem que poderiam sempre continuar a explorar os novos Estados por via neocolonial. Hoje, olhando África, vê-se aonde levou, para os povos africanos, esta política. Até na América Latina a situação apresenta semelhanças muito fortes.
A intelectualidade portuguesa, ao tempo muito afrancesada, de pronto se deitou a tentar seguir o mesmo caminho, como muito mais tarde se deu com a adesão à Europa e com a adoção do euro: se os grandes fazem, nós fazemo-lo também. Bom, já lá vão quatro décadas de III República e Portugal e os portugueses estão como se vê e com o futuro que se palpita...
A grande verdade é que Portugal acedeu às Nações Unidas e à OTAN, convindo sempre relembrar os dois doutoramentos honoris causa atribuídos a Salazar, mas com uma prática que nunca tem lugar, vindo as universidades ao país do laureado. E era assim um tão terrível ditador, um qualquer homem sem reconhecimento dos grandes e democráticos Estados e seus políticos? E logo americanos e britânicos?...
Simplesmente, a oposição a Salazar era oriunda de diversos quadrantes. Por um lado, era a parte que vinha da vida política da I República. Com o tempo, porém, as diversas forças presentes no apoio a Salazar e ao seu regime constitucional começaram a mostrar ligeiríssimas divergências: naturalmente que tudo bem, pois claro, mas também, como é óbvio… No fundo, a mesma causa: os homens dos partidos, da I República, e os copiadores da direita, que teriam de desejar os partidos, dado existirem correntes distintas no seio do regime. Todos queriam servir-se e ter poder, completamente à revelia da História de Portugal e dos seus interesses, permanentes ou de cada momento. Enquanto Salazar pensava como português e pela sua cabeça, os seus oposicionistas pensavam pelas modas do tempo ou pelos interesses estritamente pessoais.
Em contrapartida, num Portugal de referências católicas, embora muito peculiares, o apoio da Igreja Católica em Portugal ao regime constitucional oriundo da Revolução de 28 de Maio foi sempre generalizadamente incondicional. Ora, Salazar, ao menos depois da Grande Guerra, começou a ter a perceção de que as lutas no seio do regime o acabariam por deitar por terra logo após a sua morte. E foi, em boa verdade, o que se deu: Salazar era único.
É muito frequente, por falta de rigor, brandir sempre a PIDE e a Censura. Mas, como facilmente se percebe, trata-se de conversa sem nexo, porque tudo isso existia – e continua e continuará a existir – nas ditas democracias. Basta lembrar o que se passou em França e em Inglaterra, ao tempo de Salazar no poder, ou as chapeladas, ao longo de décadas, em Itália, ou o apoio dado pelo Igreja Católica à fuga de nazis para a América Latina, ou o macartismo, ou o papel de John Edgar Hoover e do FBI na perseguição aos comunistas norte-americanos, ou os voos da CIA, ou Guantánamo, ou a espionagem da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, ou o que se passou nos Estados comunistas, etc., etc..
Diz-se que a defesa das antigas províncias ultramarinas foi terrível, porque morreu muita gente, etc.. Então e o Vietname? E as intervenções sem fim dos Estados Unidos por toda a parte, nesse tempo como no atual? E será que os Estados Unidos estiveram no Vietname por quatrocentos anos? E essa presença, com tudo o que sempre teria de dar-se, nada deveria representar? Estar ou não estar era alheio a quem estava? No fundo, se olharmos sem as tais paixões, é como hoje: os portugueses não contam, apenas os credores...
Hoje, já sem rodeios, percebe-se que a III República se encontra em queda vertiginosa. Temos liberdade? Claro! Toda a liberdade, embora não a de comer, ou a de ter uma casa, ou a de tentar salvar a vida com a colaboração da Medicina, ou a do direito a uma velhice digna e prometida com força de lei imposta unilateralmente, ou a de aceder à cultura e ao conhecimento. Ou se tem dinheiro, ou paciência...
Mas o sinal que marcou o arranque da queda da III República foi o historicamente célebre concurso sobre O MAIOR PORTUGUÊS DE SEMPRE. Sabia-se que Salazar seria o vencedor, dado que o sonho de Abril se vinha decompondo rapidamente. Uma realidade suportada, sobretudo, por um PS que sempre se havia ligado à direita nos momentos cruciais e desde a Revolução de Abril. Tive, de resto, a oportunidade de salientar, por escrito e a muita gente, conhecida ou amiga, que uma revolução tem o dever de se defender. A verdade, porém, é que o não fez, pelo que Salazar, como teria de dar-se, ganhou o referido concurso, assim lançando, de modo subliminar, uma importantíssima componente que permitiu os já conhecidos desenvolvimentos posteriores...
A tudo isto juntaram-se dois factos essenciais: as ilusões que os vencedores da Revolução de 25 de Abril fizeram da adesão dos portugueses e o reconhecimento que se foi dando, aos poucos, de que se estava a criar um falhanço a prazo. Uma tomada de consciência, sobretudo, ao nível da dita população de esquerda. Dois fatores a que se pode juntar o infeliz comportamento da grande comunicação social, que rapidamente – é sempre assim – se passou, de armas e bagagens, para a área dos grandes interesses triunfantes no Mundo. Deixou de existir um crivo jornalístico suportado em valores, mas apenas a presença de dinheiro e do seu poder. E, muito acima de tudo, a perceção, como há dias referiu, com toda a razão, o Primeiro-Ministro, de que o Sistema de Justiça nunca conseguia produzir condenações nos casos de gente com real poder: oficiais-generais, juízes, procurados, banqueiros, grandes sacerdotes, etc..
A este propósito convém lembrar a Comissão de Extinção da PIDE/DGS e a dita lei da PIDE, a Lei 08/75. Se é verdade que a Legião Portuguesa foi extinta, também o é que os seus membros nunca foram julgados. Eram, na sua esmagadora maioria, militares, sobretudo do quadro permanente do Exército, no ativo ou na reserva. E a Lei 08/75 atingia, por igual, todos os que tivessem utilizado os serviços da DGS e das polícias predecessoras, como se deu com as empresas dos grandes grupos económicos. A verdade é que, deste setor, nunca ninguém foi julgado ou condenado. Utilizar os serviços da DGS em matéria de assuntos políticos nunca foi punido, apesar da lei, mas fornecer informações, ou ser funcionário da instituição já foi. Para já não referir os titulares dos cargos de Presidente do Conselho ou de Ministro do Interior, que também foram julgados e condenados. Muito bom oposicionista a Salazar se suicidou perante o que já aqui e naquele tempo se evidenciava.
Foi deste modo que se pôde assistir ao suicídio da adesão à Europa, mas, sobretudo, ao euro. Técnicos reputados contavam maravilhas de tais realidades, apenas suportadas em sonhos sem suporte objetivo e histórico. E a razão é simples: a União Europeia, naturalmente, nunca poderá obliterar a História, nem passar por sobre as nacionalidades e especificidades próprias de cada Estado e cada povo. E nunca seria necessária – nem possível – a União Europeia para se manter a paz na Europa, porque esta é suportada – isso sim – é pela OTAN.
A tudo isto somou-se a fantástica praga da corrupção, bem como do tráfico de estupefacientes. Domínios em que Portugal atingiu níveis quase inimagináveis. De molde que se chegou a este paradoxo: com a generalidade dos portugueses desiludidos com a III República, com os partidos e com a política, percebendo o terrível futuro que se aproxima, é da classe dos mais poderosos do País que se ouvem as hipócritas defesas da democracia e da liberdade mais ampla, bem como da venda de Portugal a pataco e de todo o tipo de negociatas. Assim elas dêem dinheiro aos que já o têm.
Os militares de Abril nunca perceberam completamente a natureza humana, acreditando que a democracia podia praticar-se livremente. Não perceberam, como sempre para mim foi evidente desde o meu terceiro ano de Engenharia Civil, que os resultados da democracia só são aceites pelos poderosos do Mundo se for a direita a ganhar. Para estes poderes, os estrangeiros, se patriotas, são maus, porque muito bons são os vende-pátrias.
Esta é a triste realidade a que chegaram Portugal e os portugueses: um futuro terrível, garantidamente de pobreza, com todos os direitos no papel, mas sem meios para os praticar. Até o direito à greve se mantém, embora Arménio Carlos, cheio de razão, tenha há dias explicado que tal é hoje muito difícil de realizar, dado que os portugueses estão cada dia mais pobres. A evidência, quarenta anos depois da Revolução de 25 de Abril.
Por fim, uma passagem do texto de Mário Soares desta terça-feira, no Diário de Notícias, O MANIFESTO DOS 70, reconhecendo que o empobrecimento do País é hoje como nunca existiu antes, mesmo nos ominosos tempos dos ditadores Salazar e Caetano, com o ódio da população – em todos os domínios – a um tal nível, que ministros e secretários de Estado e o Presidente da República não se atrevem a sair à rua com medo de serem vaiados, como tem acontecido. Ou, de um outro modo e como eu mesmo escrevi por diversas vezes, o atual Governo só se mantém com a proteção da polícia e dos militares. E o que nos dizem agora os militares de Abril? Bom, que, desta vez, tem de ser o povo a fazer a revolução. É caso para que digamos: ah valentes!
Hélio Bernardo Lopes
Ainda a entrevista de Garcia dos Santos
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Opinião
/ Foi publicado
sábado, 22 de março de 2014
Notícias do Nordeste